Ela chegou no dia 23 de agosto, à 1h17 da
manhã. Quando o sol raiou, ela dormia a meu lado, na cama da Casa de Parto
(Centro de Parto Normal - CPN) do Hospital Sofia Feldman. Meu esposo dormia na
cadeira ao fundo do quarto; só faltava a pequena Maya para a família estar
completa ali, e é importante mencionar também que faltava a minha mãezinha, que
cuidava de Maya, em casa. Tive um parto a jato. Entrei na fase ativa do trabalho de parto
às 21h da noite da sexta, 22 de agosto, e em quatro horas eu já tinha dilatação
total. A bolsa rompeu ainda na recepção do hospital e descemos para o CPN às
pressas. O parto não pôde ser feito na água, como era meu sonho; não houve
tempo para encher a banheira. Mas fomos ao chuveiro, e Hannah nasceu estando eu
de cócoras, sentada no banquinho meia-lua. Papai cortou o cordão, e a separou
do último elo com o mundo intrauterino, e minha filhinha deixou sua porção
aquática para trás; ela foi trazida ao mundo aeróbico e nos deu um chorinho
lindo de bebê. Seus pulmões nos sinalizaram que ela já estava presente entre
nós, que aquela criaturinha entre meus braços finalmente tinha vindo à luz para
completar a minha alegria, para inundar de luz a minha alma, para dar mais
intensidade e significados a meu mundo. Eu era mãe pela segunda vez, e realizara
meu sonho de ter um parto natural.
Quando chegamos ao hospital, as dores já
eram intensas. Depois de passar pela triagem, fiquei sentada na recepção,
aguardando me chamarem para a internação. À medida que a intensidade da dor foi
aumentando, eu já queria sair dali e virar bicho. Avisei meu esposo de que iria
lá pra fora, eu sentia que aquele momento era de ficar um pouco sozinha, de me
concentrar na dor e em seus caminhos, de dar chance a meu corpo de me ajudar a
parir melhor.
Saí pro jardinzinho do hospital e me
sentei num dos banquinhos que há lá. As contrações eram como uma dança em meu
corpo: ritmadas, líquidas, movendo-se continuamente. Sentada, com as costas
eretas, eu respirava fundo, tentando levar o ar até a bacia. Vocalizava ao
exalar, e tentava relaxar entre uma contração e outra. Depois de algumas
contrações e da disciplina da respiração lenta, perdi a noção do tempo e
mergulhei no abismo escuro da dor. A dor era isto: um abismo sem tempo e forma,
onde meu corpo não tinha mais peso e dentro do qual eu caía lentamente. Não sei
quanto tempo durou tudo... Meia hora, uma hora, talvez. Sentia como a dor
dilacerava meu corpo, mas eu pertencia completamente a ela, sem medo,
respirando lenta e profundamente. Houvesse o que houvesse, respirar era o único
fio que me unia àquele jardim e ao ar fresco daquela noite. O resto era escuro.
Mas eu não tinha medo. Aquela dor era amiga, era a fronteira entre Hannah e eu,
era como uma linha de fogo que me separava do momento em que teria a pequena em
meu colo. Não lutei com essa dor, me entreguei a ela e, então, ela se tornou
minha aliada, senti como meu corpo se abria, literalmente. Eu passei da
vocalização aos gemidos, dos gemidos ao choro entrecortado, do choro à prece.
Rezava, pedia a Deus que fosse já, que meu corpo estava exausto. Existe muito
de divino em um parto: a força, o inexplicável, o que não se vê e nem se toca,
mas que está ali.
Enquanto eu entrava em contato com o
primitivo que há em mim - que há em todos nós -, meu esposo acompanhava tudo da
janela da recepção. Ele respeitou meu desejo de ficar sozinha, mas acompanhava
cada passo meu. Quando sinto dor, eu gosto de ficar quietinha. Não sou de ficar
aos gritos, nem de quebrar o mundo. Acho que sou meio estoica para sentir dor.
E sou meio bicho também. Lembro de uma cachorrinha que tivemos em casa, e de
como ela se refugiava numa das laterais da casa para parir. Ela se afastava de
todos para dar à luz, aquele era um momento só dela, a natureza tem dessas
sabedorias.
Quando a dilatação estava completa,
comecei a sentir os puxos. E são inconfundíveis. Nenhuma mulher se engana
quando já é hora de dar à luz porque o corpo grita através dos músculos, o
corpo anuncia que já é hora de entregar ao mundo a cria. Nesse momento, olhei
em direção à janela, e meu esposo veio correndo até mim. Eu disse a ele algo
como "já vai nascer", tentei mas não consegui ficar em pé, senti
puxos mais fortes ainda, me sentei outra vez e respirei fundo. Tomei fôlego, me
apoiei nele e entramos no hospital. Ao chegar na recepção, tive outra contração
fortíssima, me abracei a ele e, nesse momento, senti como a bolsa se rompia: um
líquido quente encharcou minha calça e os sapatos, molhando, também, a entrada
da sala. Fomos levados para uma salinha e eu me deitei em uma maca. Hannah já quase
nascia, não havia enfermeiras ali e pedi a meu marido que corresse porque a
bebê já estava coroando. Eu não queria que minha filha nascesse numa maca,
queria o parto na água! Quando as enfermeiras chegaram, confirmaram que eu já
tinha dilatação total e a bebê já estava coroando. Uma delas disse "vamos
descer pro CPN, ela quer ter o bebê lá", e eu pensei "Como vou
caminhar quase parindo??". A enfermeira me tranquilizou, me disse que tudo
daria certo, e nesse momento meu parto se tornou digno de um roteiro de
Almodóvar: a enfermeira passou um lençol entre minhas pernas, segurou as pontas
na frente e atrás, eu me apoiei nela, e, assim, descemos os vários degraus que
separam a recepção do hospital da casa de parto. Encorajada por duas
enfermeiras e pelo meu marido, fomos, passo a passo, respirando fundo,
caminhando aquela eternidade de distância. Elas me diziam "respira fundo,
já estamos quase lá", e eu pensava "minha filha vai nascer num
lençol". Conseguimos chegar ao quarto, caí sobre a cama, deitada de lado,
já queria parir ali, meu corpo já não podia evitar a chegada da pequena ao
mundo: dilatação total, bolsa rota, bebê a postos para nascer. Eu não via
quantas pessoas havia a meu redor, mas eram, pelo menos, umas seis. Fui levada
para o chuveiro, a vontade de parir era intensa, o corpo fica descontrolado
quando já é hora de nascer, a cabeça da gente não pode fazer muito. Sentei no
banquinho meia-lua e em poucos minutos Hannah estava em meus braços.
Hannah nasceu medindo 51 cm e pesando
3.590 g; teve Apgar nota 9 no 1º minuto e 10 no 5º minuto; mamou na primeira
hora de vida e nasceu gordinha e rosada, uma fofura! Quando voltei para a cama,
foi quando lembrei de entregar às enfermeiras o meu plano de parto, e devo
dizer que elas foram ótimas e, a partir de então, seguiram tudo o que pedi
nele. Fotografamos a minha placenta - eu não iria conseguir levá-la pra casa,
uma pena! - e passei toda a noite sem conseguir dormir, excitada com a novidade
que dormia ao meu lado.
Maya e minha mãe chegaram ao hospital por
volta do meio-dia seguinte. A reação de Maya ao ver Hannah em meus braços foi
linda e surpreendente: "Que bebezinho mais 'munito', mamãe!", e eu
entendi que minha filhinha mais velha era uma criatura incrível, capaz de ver a
essência das coisas. O olhar generoso de Maya sobre Hannah me comoveu.
Tivemos alta na manhã do domingo. Deixar a
Casa de parto foi como deixar um lugar muito especial, onde ficou um pedacinho
de mim. Eu exalava ocitocina até aquele momento, e me despedi das enfermeiras
com muito carinho.
Sou profundamente grata à equipe do
Hospital Sofia Feldman pelo parto respeitoso e pelo tratamento delicado que
dispensaram a mim e a minha bebê. Todas as enfermeiras foram muito atenciosas e
dedicadas, Hannah foi muito bem cuidada e eu, igualmente. A gente sente
esperança quando vê que, num hospital público, é possível ter um parto
humanizado e com dignidade. Confesso que, no princípio, foi preciso ter coragem para aceitar
ter minha segunda filha através do SUS. Eu sou oriunda da cultura do plano de
saúde, do atendimento pelo convênio, e pensar em abrir mão do parto em um
hospital privado só foi possível porque a minha primeira experiência como
parturiente me deixou muitos dissabores em relação ao hospital escolhido - um hospital privado - e seus
protocolos. A consciência de que, em maternidades e hospitais privados, a
incidência de cesárias desnecessárias beira os 80 ou 90% me deu a certeza de
que eu tentaria um caminho alternativo desta vez. E fui feliz em minha escolha,
e foi acertada a minha decisão. Apesar de ter tido uma ótima experiência de
parto e pós-parto, preciso fazer uma crítica construtiva ao hospital: a
admissão foi excessivamente lenta, cheguei com TP avançado e tive que esperar
uma hora e meia para que me internassem. Meu marido oficializou a minha
internação depois de Hannah já ter nascido!! Se a admissão houvesse sido mais
eficiente, eu poderia ter vivido um TP na água, já estando internada. Mas não
faz mal. Fica a dica para outras mulheres: se já chegarem com TP avançado como
eu, gritem!!! :)
Endosso todas as minhas palavras de 21 de agosto sobre a dor de parir e sobre a importância da respiração:
meu trabalho de parto foi muito mais leve graças à respiração e à consciência
daquilo que poderia ajudar meu corpo durante as dores das contrações. Espero
que essas palavras possam incentivar outras mulheres a repensar a sua relação
com a dor do parto e seus significados.
Parir com respeito faz toda a diferença
para a vida da mulher. Nascer com respeito faz toda a diferença para a vida do
ser humano.
Saudações maternas,
Biazinha