quinta-feira, 17 de julho de 2014

Parir: verbo transitivo

O que vou escrever aqui, agora, é um desabafo, e não quero que seja tomado de outra maneira, nem que seja entendido como um discurso que queira adeptos, ou réplicas raivosas. Dito isso, começo a traçar minhas linhas...

Vejo o parto como um tema ao redor do qual giram discursos românticos e realistas. Tomo essas duas palavras - "romântico" e "realista" - em suas acepções originais: o romântico, eu o tomo como aquele que passa pela idealização, associado a valores como bom, puro, intenso, selvagem, essencial; o realista, em contrapartida, tomo como desiludido, ácido, cínico, perpassado pela civilização, pelo que oferece a cidade e a máquina e embebido dos valores da Medicina, da Ciência, do conhecimento acadêmico e da técnica. O romântico se volta para o primitivo, para os sentimentos puros, para a essência humana tida como boa, como natural. O realista se constrói sobre a cidade, o lucro, o trabalho em série, a técnica que escraviza em lugar de libertar.

Vejamos como se delineia meu raciocínio, vamos amadurecê-lo juntos. 

O que é parir? Primeiro vamos dissecar esse verbo tão bonito: parir. Parir vem do latim parere, e tem a mesma origem de aparecer, surgir. Segundo o Aurélio, é: verbo transitivo. Dar à luz, falando-se da fêmea vivípara quando expele do útero o ser que gerou. Muito bem, pois a fêmea é quem expele o serzinho que está ali. Estamos falando de um processo ativo, então. Pela definição do dicionário, a fêmea é o sujeito que realiza a ação. Isso se aproxima, então, da definição romântica: a natureza realiza seu papel, dá à fêmea a capacidade de realizar o trabalho de dar um ser à luz. Nascer e parir são ações naturais, concordam? Isso se aproxima dos conceitos que proponho como românticos, pois nada mais selvagem, primitivo, que uma fêmea uivando de dor durante as contrações uterinas e dando à luz seu rebento.

Parir é intenso. Parir é entrar em comunhão com a natureza que nos criou e ser como todas as mamíferas que parem. E há quem leve esse conceito romântico ao extremo, há quem seja ultra-romântico.

Parir, segundo os moldes realistas, depende da civilização e da técnica. Nada de ser bicho, nada de uivos e gemidos. Parir tem que estar cercado de assepsia, do cheiro de éter (ops! Isso parece romantismo também, mas não é!), do ambiente hospitalar, da técnica criada para padronizar a ação de nascer. O corpo domesticado pela civilização é posto na horizontal, ligado a máquinas e monitores, e tem um tempo estabelecido para que o ser gerado no útero seja retirado com engenhosidade e perícia. 

Se o realismo aprecia a técnica, é com ela que ele vai dominar os processos naturais de nascer. Entra em ação o médico. E sai de cena o verbo parir. Quem traz o ser à luz, agora, não é mais a mãe, é o médico, imbuído dos conhecimentos que vem da antiguidade clássica e que foram sendo avalizados ao longo de séculos de tradição na nossa sociedade ocidental. A pergunta realista é: Por que parir de maneira selvagem quando se pode ter a Ciência a seu favor?? 

A fêmea perdeu sua força primitiva quando foi levada ao hospital. Ela foi deitada em uma cama, dopada com anestésicos, teve seu corpo cortado, esqueceu como expelir do seu útero o bebê gerado em seu ventre. O médico é quem faz o parto agora. Hoje em dia, pergunta-se às amigas: "Quem fez o seu parto?", "Ah, foi o Dr. Fulano de tal"... A mulher se esqueceu como fazer força para ajudar a natureza, separou-se do trabalho da natureza presente no parir, no "surgimento" de um novo ser sobre a face da terra. 

Gosto quando Eduardo Galeano usa a palavra divórcio para referir-se às cisões provocadas pelo ser humano para impor mudanças culturais. E vejo que há um divórcio lamentável entre o corpo da mulher e o parto. Nós, mulheres, nos distanciamos do parir, esquecemos qual é a forma, o caminho que devemos atravessar da gestação ao parto, e entregamos nas mãos de médicos o momento mais mágico que a natureza nos deu: dar à luz nossos filhos. Tememos a dor, essa vilã que a medicina tenta domesticar com suas drogas e fármacos poderosos. Tememos que a passagem de um bebê nos dilacere o canal vaginal. Muitas mulheres sentem o parto como grotesco e veem na cesárea eletiva a forma civilizada de nascer. Marca-se o dia e a hora, como uma ida a um evento pomposo. Não se sente dor (Efêmera ilusão!...), não se vê nada, não se sente nada mesmo! Acho, inclusive, que nem emoção se sente. :(

Não é por acaso que já ouvi piadas dizendo que as mulheres que desejam parto natural são como aborígenes. Associa-se o parto natural a algo selvagem. A mulher "civilizada", a mulher das grandes metrópoles tem que passar por "procedimentos controlados", ter filhos "em série", nas "maternidades-fábricas". Nada mais realista para o nascimento contemporâneo: o medo a perder o controle, a libertar a selvageria do nascer, a perder a compostura, tempo, dinheiro, a desperdiçar o conhecimento médico quando se escolhe parir em comunhão com o tempo da natureza... E a associação entre parto natural e aborígenes, além de preconceituosa e infeliz, é lamentável, porque ignora um conhecimento ancestral e extremamente respeitoso com o corpo e a natureza praticado pelos indígenas.

A conivência entre mulheres-separadas-do-seu-corpo e determinada linha da medicina fez surgir o nascimento asséptico escolhido no calendário. Agenda-se o dia de ir ao hospital e fazer o milagre da vida brotar. Mas quem o faz? O obstetra não quer perder o seu dia de consultas; a mulher não quer perder o quê? Concordo que ninguém quer sentir dor, dor não é uma coisa agradável para ninguém, mas há formas de encarar a dor, de driblá-la. A dor é uma forma de vivenciar esse caminho, apenas isso. Há gente que nem pensa na dor quando vivencia o trabalho de parto. A alegria de ver o filho nascer, o poder que se sente ao ver que seu corpo é capaz de parir, a dança que a dor realiza sobre a bacia e sobre o útero são sinais de que a hora de ter o filho nos braços se aproxima, ela é uma dor com hora marcada para terminar! Depois dessa dor, vem uma paz imensa. Depois que parimos, surge a mãe. Surge a mãe junto com o surgimento do filho. 

Não quero fixar um olhar ultra-romântico sobre minha gestação e o parto da minha segunda filha. Não me vejo sobre radicalismos, pois os mesmos nos deixam cegos para aquilo que pode falhar, e aí o risco de frustração é certo. Quero me preservar de possíveis frustrações e decepções. Não quero me frustrar se o parto de agora não for perfeito, até porque não acredito em perfeição. Não quero me frustrar se as coisas não forem como eu espero. Em síntese, eu não quero esperar muito mais do que sei ser capaz. E parte de mim é romântica quando me reconheço como parte da natureza e quero essa comunhão ancestral com a maneira como as mulheres da minha família pariram ao longo de gerações. Também porque quero um parto respeitoso, e creio que e preciso uma dose de realismo para lutar por isso se for preciso. Quero me sentir parindo de verdade. Que meu corpo tenha o seu tempo respeitado, que Hannah nasça na hora em que for a certa. Sei que o hospital que escolhi tende a respeitar o parto e o nascimento. Sei que aí eu terei um parto humanizado. Mas não quero que minhas expectativas sejam castelos no ar. Não quero dar espaço para desilusões. 

Proponho a retomada do corpo pela mulher. O corpo é seu, é meu, e nenhum médico deve nos impor como nossos filhos devem nascer. Devemos nos conectar com a essência do feminino, com nossos úteros, pois aprendi que eles têm muito a nos dizer. Vivenciei uma experiência muito mágica e bonita relacionada ao feminino poucos dias antes de ficar grávida. Essa experiência tinha relação com a percepção do útero e da conexão que nossa alma pode estabelecer com ele. Essa vivência pode ser entendida também pela ótica do sagrado por alguns, mas, para mim, ela foi corporal e também foi anímica. Minha alma e meu útero me mostraram que há uma conexão primitiva aí e só precisamos nos ligar a ela. Parir passa por aí, nascer também. Minha proposta contemporânea para o nascimento passa pela Vida: é preciso que nos conectemos outra vez com a Vida, com perceber nosso corpo e nossa alma e a ligação entre eles. Nascer merece respeito em seu tempo, em sua dinâmica, em seus processos. A sociedade do consumo - lucro, tempo curto, pressa, velocidade, superficialidade, fugacidade - nos desconectou de viver profundamente as experiências que realmente valem a pena e nos alimentam a alma. E todas as engrenagens terminam conectadas a isso: médicos, hospitais, clínicas, corpos... Nascer merece respeito. Nascer merece tempo. E não é o tempo dos relógios, meus caros; é um tempo cíclico que precisa ser resgatado na natureza e no feminino.

Saudações maternas,

Biazinha


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