segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A chegada de Hannah

Ela chegou no dia 23 de agosto, à 1h17 da manhã. Quando o sol raiou, ela dormia a meu lado, na cama da Casa de Parto (Centro de Parto Normal - CPN) do Hospital Sofia Feldman. Meu esposo dormia na cadeira ao fundo do quarto; só faltava a pequena Maya para a família estar completa ali, e é importante mencionar também que faltava a minha mãezinha, que cuidava de Maya, em casa. Tive um parto a jato. Entrei na fase ativa do trabalho de parto às 21h da noite da sexta, 22 de agosto, e em quatro horas eu já tinha dilatação total. A bolsa rompeu ainda na recepção do hospital e descemos para o CPN às pressas. O parto não pôde ser feito na água, como era meu sonho; não houve tempo para encher a banheira. Mas fomos ao chuveiro, e Hannah nasceu estando eu de cócoras, sentada no banquinho meia-lua. Papai cortou o cordão, e a separou do último elo com o mundo intrauterino, e minha filhinha deixou sua porção aquática para trás; ela foi trazida ao mundo aeróbico e nos deu um chorinho lindo de bebê. Seus pulmões nos sinalizaram que ela já estava presente entre nós, que aquela criaturinha entre meus braços finalmente tinha vindo à luz para completar a minha alegria, para inundar de luz a minha alma, para dar mais intensidade e significados a meu mundo. Eu era mãe pela segunda vez, e realizara meu sonho de ter um parto natural.

Quando chegamos ao hospital, as dores já eram intensas. Depois de passar pela triagem, fiquei sentada na recepção, aguardando me chamarem para a internação. À medida que a intensidade da dor foi aumentando, eu já queria sair dali e virar bicho. Avisei meu esposo de que iria lá pra fora, eu sentia que aquele momento era de ficar um pouco sozinha, de me concentrar na dor e em seus caminhos, de dar chance a meu corpo de me ajudar a parir melhor.

Saí pro jardinzinho do hospital e me sentei num dos banquinhos que há lá. As contrações eram como uma dança em meu corpo: ritmadas, líquidas, movendo-se continuamente. Sentada, com as costas eretas, eu respirava fundo, tentando levar o ar até a bacia. Vocalizava ao exalar, e tentava relaxar entre uma contração e outra. Depois de algumas contrações e da disciplina da respiração lenta, perdi a noção do tempo e mergulhei no abismo escuro da dor. A dor era isto: um abismo sem tempo e forma, onde meu corpo não tinha mais peso e dentro do qual eu caía lentamente. Não sei quanto tempo durou tudo... Meia hora, uma hora, talvez. Sentia como a dor dilacerava meu corpo, mas eu pertencia completamente a ela, sem medo, respirando lenta e profundamente. Houvesse o que houvesse, respirar era o único fio que me unia àquele jardim e ao ar fresco daquela noite. O resto era escuro. Mas eu não tinha medo. Aquela dor era amiga, era a fronteira entre Hannah e eu, era como uma linha de fogo que me separava do momento em que teria a pequena em meu colo. Não lutei com essa dor, me entreguei a ela e, então, ela se tornou minha aliada, senti como meu corpo se abria, literalmente. Eu passei da vocalização aos gemidos, dos gemidos ao choro entrecortado, do choro à prece. Rezava, pedia a Deus que fosse já, que meu corpo estava exausto. Existe muito de divino em um parto: a força, o inexplicável, o que não se vê e nem se toca, mas que está ali.

Enquanto eu entrava em contato com o primitivo que há em mim - que há em todos nós -, meu esposo acompanhava tudo da janela da recepção. Ele respeitou meu desejo de ficar sozinha, mas acompanhava cada passo meu. Quando sinto dor, eu gosto de ficar quietinha. Não sou de ficar aos gritos, nem de quebrar o mundo. Acho que sou meio estoica para sentir dor. E sou meio bicho também. Lembro de uma cachorrinha que tivemos em casa, e de como ela se refugiava numa das laterais da casa para parir. Ela se afastava de todos para dar à luz, aquele era um momento só dela, a natureza tem dessas sabedorias.

Quando a dilatação estava completa, comecei a sentir os puxos. E são inconfundíveis. Nenhuma mulher se engana quando já é hora de dar à luz porque o corpo grita através dos músculos, o corpo anuncia que já é hora de entregar ao mundo a cria. Nesse momento, olhei em direção à janela, e meu esposo veio correndo até mim. Eu disse a ele algo como "já vai nascer", tentei mas não consegui ficar em pé, senti puxos mais fortes ainda, me sentei outra vez e respirei fundo. Tomei fôlego, me apoiei nele e entramos no hospital. Ao chegar na recepção, tive outra contração fortíssima, me abracei a ele e, nesse momento, senti como a bolsa se rompia: um líquido quente encharcou minha calça e os sapatos, molhando, também, a entrada da sala. Fomos levados para uma salinha e eu me deitei em uma maca. Hannah já quase nascia, não havia enfermeiras ali e pedi a meu marido que corresse porque a bebê já estava coroando. Eu não queria que minha filha nascesse numa maca, queria o parto na água! Quando as enfermeiras chegaram, confirmaram que eu já tinha dilatação total e a bebê já estava coroando. Uma delas disse "vamos descer pro CPN, ela quer ter o bebê lá", e eu pensei "Como vou caminhar quase parindo??". A enfermeira me tranquilizou, me disse que tudo daria certo, e nesse momento meu parto se  tornou digno de um roteiro de Almodóvar: a enfermeira passou um lençol entre minhas pernas, segurou as pontas na frente e atrás, eu me apoiei nela, e, assim, descemos os vários degraus que separam a recepção do hospital da casa de parto. Encorajada por duas enfermeiras e pelo meu marido, fomos, passo a passo, respirando fundo, caminhando aquela eternidade de distância. Elas me diziam "respira fundo, já estamos quase lá", e eu pensava "minha filha vai nascer num lençol". Conseguimos chegar ao quarto, caí sobre a cama, deitada de lado, já queria parir ali, meu corpo já não podia evitar a chegada da pequena ao mundo: dilatação total, bolsa rota, bebê a postos para nascer. Eu não via quantas pessoas havia a meu redor, mas eram, pelo menos, umas seis. Fui levada para o chuveiro, a vontade de parir era intensa, o corpo fica descontrolado quando já é hora de nascer, a cabeça da gente não pode fazer muito. Sentei no banquinho meia-lua e em poucos minutos Hannah estava em meus braços. 

Hannah nasceu medindo 51 cm e pesando 3.590 g; teve Apgar nota 9 no 1º minuto e 10 no 5º minuto; mamou na primeira hora de vida e nasceu gordinha e rosada, uma fofura! Quando voltei para a cama, foi quando lembrei de entregar às enfermeiras o meu plano de parto, e devo dizer que elas foram ótimas e, a partir de então, seguiram tudo o que pedi nele. Fotografamos a minha placenta - eu não iria conseguir levá-la pra casa, uma pena! - e passei toda a noite sem conseguir dormir, excitada com a novidade que dormia ao meu lado.

Maya e minha mãe chegaram ao hospital por volta do meio-dia seguinte. A reação de Maya ao ver Hannah em meus braços foi linda e surpreendente: "Que bebezinho mais 'munito', mamãe!", e eu entendi que minha filhinha mais velha era uma criatura incrível, capaz de ver a essência das coisas. O olhar generoso de Maya sobre Hannah me comoveu. 

Tivemos alta na manhã do domingo. Deixar a Casa de parto foi como deixar um lugar muito especial, onde ficou um pedacinho de mim. Eu exalava ocitocina até aquele momento, e me despedi das enfermeiras com muito carinho.

Sou profundamente grata à equipe do Hospital Sofia Feldman pelo parto respeitoso e pelo tratamento delicado que dispensaram a mim e a minha bebê. Todas as enfermeiras foram muito atenciosas e dedicadas, Hannah foi muito bem cuidada e eu, igualmente. A gente sente esperança quando vê que, num hospital público, é possível ter um parto humanizado e com dignidade. Confesso que, no princípio, foi preciso ter coragem para aceitar ter minha segunda filha através do SUS. Eu sou oriunda da cultura do plano de saúde, do atendimento pelo convênio, e pensar em abrir mão do parto em um hospital privado só foi possível porque a minha primeira experiência como parturiente me deixou muitos dissabores em relação ao hospital escolhido  - um hospital privado - e seus protocolos. A consciência de que, em maternidades e hospitais privados, a incidência de cesárias desnecessárias beira os 80 ou 90% me deu a certeza de que eu tentaria um caminho alternativo desta vez. E fui feliz em minha escolha, e foi acertada a minha decisão. Apesar de ter tido uma ótima experiência de parto e pós-parto, preciso fazer uma crítica construtiva ao hospital: a admissão foi excessivamente lenta, cheguei com TP avançado e tive que esperar uma hora e meia para que me internassem. Meu marido oficializou a minha internação depois de Hannah já ter nascido!! Se a admissão houvesse sido mais eficiente, eu poderia ter vivido um TP na água, já estando internada. Mas não faz mal. Fica a dica para outras mulheres: se já chegarem com TP avançado como eu, gritem!!! :)

Endosso todas as minhas palavras de 21 de agosto sobre a dor de parir e sobre a importância da respiração: meu trabalho de parto foi muito mais leve graças à respiração e à consciência daquilo que poderia ajudar meu corpo durante as dores das contrações. Espero que essas palavras possam incentivar outras mulheres a repensar a sua relação com a dor do parto e seus significados. 

Parir com respeito faz toda a diferença para a vida da mulher. Nascer com respeito faz toda a diferença para a vida do ser humano. 

Saudações maternas,


Biazinha


2 comentários:

  1. Oi Fabiana! que post lindo...cheguei aqui atras do post sobre faixa abdominal para ajudar a segurar o peso da pancinha em que carrego meu filho...mas fiquei encantada pela sua narrativa, pelo seu jeito bonito de escrever e pelo relato de parto. Também espero que o meu seja tranquilo e bonito... um abraço a você, familia e filhas, espero que esteja tudo bem por ai! gostaria de ler textos novos!
    até!

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  2. Oi, Nicole! Fico feliz que tenha gostado do texto! É bom tecer diálogos... Abraço!

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